Leia o texto. Quando cheguei à rua do Fonseca, notei logo que as janelas do quarto andar estavam todas fechadas – hum! A porta da rua tranca...
Leia o texto.
Quando cheguei à rua do Fonseca, notei logo que as janelas do quarto andar estavam todas fechadas – hum! A porta da rua trancada. Mau sinal. Ao sol puro e claro da manhã, a fachada reluzia na frescura da pedra branca, dos estuques rosados e novos. O próprio prédio parecia dormir, sereno, sorrindo ao sol, com as pálpebras das cortinas todas descidas. À beira do passeio o Chevrolet do Fonseca, consideravelmente empoeirado, esperava. Mas que silêncio nesta rua nova! A calçadinha do passeio estalava-me debaixo das solas dos sapatos.
Não havia remédio senão tocar a campainha. Mas tocariam as campainhas? Outro dia não funcionavam. Há sempre alguma complicação nestes prédios novos: ou falta a água porque a Câmara ainda não abriu as canalizações, ou é o trinco que não funciona, ou não há corrente, ou cortaram o gás.
Enquanto esperava que de cima abrissem a porta (devia estar tudo a postos, era para largarmos às sete, imagine-se!) fui examinar o carro: já teria o pneu cheio? Isso sim: o Chevrolet descaía tristemente sobre um pneu vazio, à retaguarda, como um cavalo sobre uma pata cansada. O Fonseca (tornei a olhar para as janelas: fechadas) ainda não tinha saído da toca.
A coisa estava bonita. Se ele já teria metido gasolina? Fui buscar um pauzinho à obra ao lado, desatarraxei o tampão do tanque, e meti o pauzinho para medir o nível: saiu seco. E o radiador, provavelmente, como sempre, não tem pinga de água. Mudar o pneu, meter gasolina, água…
Temos para meia hora ou mais. E aqui perto não há uma garagem.
Lá de cima continuavam a não abrir a porta. Ó senhor, passa das oito, e esta gente… Fui-me à campainha e carreguei-lhe furiosamente: nada. Deviam estar mergulhados num sono de chumbo, de morte. À ideia de morte estremeci: quem sabe se não estariam envenenados com o gás da cozinha! Senti-me verdadeiramente inquieto. Se não fosse ali o Chevrolet, havia de julgar que já tinham saído. E era às sete que isto… Ah, mas lá vinha um padeiro, com a toalha branca do cabaz cheia de sol festivo. Ora bom dia! Felizmente há sempre um vizinho que se levanta cedo ao domingo, e come pão fresco ao pequeno-almoço. (Também havia padeiros ao domingo!)
Entrei atrás dele e subi ao último andar. Diante da porta detive-me um momento a escutar: silêncio. Então, quase capaz de me ir embora, de voltar para a minha Umbelina e para o meu domingo, e em todo o caso com uma vontade cruel de fazer violências, carreguei demoradamente no botão da campainha que fazia vibrar a porta de alto a baixo. Aquilo não era campainha, era um motor de avião. Até parecia que as paredes tremiam, e aquela gente sem acordar! Então, danado por me terem forçado a deitar-me tarde e a sair da cama ao cantar do galo, assentei quatro murros na porta, fenomenais. Fiquei com as mãos dormentes.
José Rodrigues Miguéis, «Uma Viagem na Nossa Terra», in
Léah e Outras Histórias, 7.ª ed., Lisboa, Estampa, 1982, pp. 46-47.
EXAME NACIONAL - QUESTÃO 05
Analise a evolução do estado de espírito do narrador ao longo do excerto.
SOLUÇÃO:
O narrador experimenta, ao longo deste excerto, uma evolução quanto ao seu estado de espírito. Como se presume, o narrador chegou atempadamente ao local aprazado – junto ao prédio do Fonseca – para uma atividade que tinha sido por eles organizada para aquela manhã de domingo.
Depois de uma primeira observação, o narrador constatou que em casa/prédio do Fonseca não existiam quaisquer indícios de atividade. Perante isto, a sua observação deslocou-se para outros pormenores necessários e que estariam implicados no evento: o carro – pneu, tanque combustível, radiador…
Contudo, tudo confirmava os indícios que conduziriam a um não cumprimento do prazo. Por isso, começou a crescer no narrador, de forma acentuada, uma irritação relativamente àquele conduta e ao atraso acumulado.
O estado de irritação em crescendo dá, por fim, lugar a um sentimento de fúria, visível na descrição da violência do toque à campainha e ao bater da porta. De referir, por fim, que este estado colérico do narrador é, pontualmente, amenizado pela hipótese esboçada de uma desgraça perante tanto silêncio.
PRÓXIMA QUESTÃO:
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