Leia os dois textos e as notas. Na resposta aos itens de 4. a 6 ., tenha em consideração ambos os textos. O oficial era moço, talvez não ti...
Leia os dois textos e as notas. Na resposta aos itens de 4. a 6., tenha em consideração ambos os textos.
O oficial era moço, talvez não tinha trinta anos; posto que o trato das armas, o rigor das estações, e o selo visível dos cuidados que trazia estampado no rosto, acentuassem já mais fortemente, em feições de homem feito, as que ainda devia arredondar a juventude.
A sua estatura era mediana, o corpo delgado, mas o peito largo e forte como precisa um coração de homem para pulsar livre; seu porte gentil e decidido de homem de guerra desenhava-se perfeitamente sob o espesso e largo sobretudo militar – espécie de great-coat¹ inglês que a imitação das modas britânicas tinha tornado familiar nos nossos bivaques². Trazia-o desabotoado e descaído para trás, porque a noite não era fria; e via-se por baixo elegantemente cingida ao corpo a fardeta parda dos caçadores, realçada de seus característicos alamares³ pretos e avivada de encarnado...
Uniforme tão militar, tão nacional, tão caro a nossas recordações – que essas gentes, prostituidoras de quanto havia nobre, popular e respeitado nesta terra, proscreveram⁴ do exército... por muito português de mais talvez! deram-lhe baixa para os beleguins⁵ da alfândega, reformaram-no em uniforme da bicha⁶!
Não pude resistir a esta reflexão: as amáveis leitoras me perdoem por interromper com ela o meu retrato.
Mas quando pinto, quando vou riscando e colorindo as minhas figuras, sou como aqueles pintores da Idade Média que entrelaçavam nos seus painéis dísticos de sentenças, fitas lavradas de moralidades e conceitos... talvez porque não sabiam dar aos gestos e atitudes expressão bastante para dizer por eles o que assim escreviam, e servia a pena de suplemento e ilustração ao pincel... Talvez: e talvez pelo mesmo motivo caio eu no mesmo defeito...
Será; mas em mim é irremediável, não sei pintar de outro modo.
Voltemos ao nosso retrato.
Os olhos pardos e não muito grandes, mas de uma luz e viveza imensa, denunciavam o talento, a mobilidade do espírito – talvez a irreflexão... mas também a nobre singeleza de um carácter franco, leal e generoso, fácil na ira, fácil no perdão, incapaz de se ofender de leve, mas impossível de esquecer uma injúria verdadeira.
Almeida Garrett, Viagens na Minha Terra, 2.ª ed., Lisboa, Portugália, 1963, pp. 148-149.
– Meu pai! Não meta este senhor em maiores trabalhos! – disse Mariana.
– Não tem dúvida, menina – atalhou Simão; – eu é que não quero meter ninguém em trabalhos. Com a minha desgraça, por maior que ela seja, hei de eu lutar sozinho.
João da Cruz, assumindo uma gravidade de que a sua figura raras vezes se enobrecia, disse:
– Senhor Simão, Vossa Senhoria não sabe nada do mundo. Não meta sozinho a cabeça aos trabalhos, que eles, como o outro que diz, quando pegam de ensarilhar um homem, não lhe deixam tomar fôlego. Eu sou um rústico; mas, a bem dizer, estou naquela daquele que dizia que o mal dos seus burrinhos o fizera alveitar⁷. Paixões, que as leve o diabo, e mais quem com elas engorda. Por causa de uma mulher, ainda que ela seja filha do rei, não se há de um homem botar a perder⁸. Mulheres há tantas como a praga, e são como as rãs do charco, que mergulha uma, e aparecem quatro à tona d’água. Um homem rico e fidalgo como Vossa Senhoria, onde quer, topa uma com um palmo de cara como se quer, e um dote de encher o olho. Deixe-a ir com Deus ou com a breca, que ela, se tiver de ser sua, à mão lhe há de vir dar, e tanto faz andar pra trás como pra diante, é ditado dos antigos. Olhe que isto não é medo, fidalgo; tome sentido, que João da Cruz sabe o que é pôr dois homens duma feita a olhar o sete-estrelo⁹, mas não sabe o que é medo. Se o senhor quer sair à estrada e tirar a tal pessoa ao pai, ao primo, e a um regimento, se for necessário, eu vou montar na égua, e daqui a três horas estou de volta com quatro homens, que são quatro dragões.
Simão fitara os olhos chamejantes nos do ferrador, e Mariana exclamara, ajuntando as mãos sobre o seio:
– Meu pai! não lhe dê esses conselhos!…
– Cala-te aí, rapariga! – disse mestre João. – Vai tirar o albardão¹⁰ à égua, amanta-a, e bota-lhe seco. Não és aqui chamada.
– Não vá aflita, senhora Mariana – disse Simão à moça, que se retirava amargurada. – Eu não aproveito alguns dos conselhos de seu pai. Ouço-o com boa vontade, porque sei que quer o meu bem; mas hei de fazer o que a honra e o coração me aconselhar.
Camilo Castelo Branco, Amor de Perdição, edição de Aníbal
Pinto de Castro, Porto, Caixotim, 2006, pp. 194-195.
NOTAS
¹great-coat – espécie de sobretudo; casaco comprido.
²bivaques – modalidade de estacionamento de tropas em que estas se alojam em tendas de campanha ou abrigos improvisados.
³alamares – cordões metálicos que guarnecem, pela frente, uma peça de vestuário, de um lado ao outro da abotoadura.
⁴proscreveram – baniram; afastaram.
⁵beleguins – oficiais de justiça.
⁶uniforme da bicha – uniforme de aspirante a oficial.
⁷alveitar – referência a alguém cujo conhecimento assenta na experiência de vida; aquele que trata de doenças de animais, sem diploma legal.
⁸botar a perder – deitar a perder.
⁹sete-estrelo – grupo de estrelas na constelação das Plêiades; as estrelas.
¹⁰albardão – sela grande; assento grosseiro que se coloca no dorso da cavalgadura para a montar.
EXAME NACIONAL - QUESTÃO 05
O narrador, num caso, e João da Cruz, no outro, exprimem opiniões sobre o que observam no mundo em que vivem.
Explicite uma opinião defendida por cada um deles.
SOLUÇÃO:
O narrador do excerto de Viagens na minha terra, num caso, e João da Cruz, no outro, exprimem opiniões sobre o que observam no mundo em que vivem.
No caso de Viagens na minha terra, o narrador critica o abandono do que é nacional por imitações do que é estrangeiro. Em concreto, critica o abandono da farda militar portuguesa, que foi substituída por um uniforme que imita a farda das tropas inglesas. Esta crítica é feita recorrendo à ironia uma vez que afirma que seria demasiado nacional a farda para poder continuar a ser usada numa terra que se deixou corromper.
Em Amor de perdição, João da Cruz, contrariando o sentir e os intentos de Simão, é da opinião que a vivência exagerada da paixão conduz à perda da razão. Por isso, de forma fria, esclarece o seu parecer de que, a um homem rico e fidalgo como Simão, não faltarão mulheres bonitas e com dote e que, se o destino o quiser, Teresa há de ser sua.
PRÓXIMA QUESTÃO:
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