Considerando-se, no contexto da obra, o trecho “Vimos como quemvinga uma montanha altíssima. No alto
Texto para as questões de 24 a 28.
Capítulo VI
O fim
Não há relatar o que houve a 3 e a 4**.
A luta, que viera perdendo dia a dia o caráter militar, degenerou, ao cabo*, inteiramente. Foram-se os últimos traços de um formalismo inútil: deliberações de comando, movimentos combinados, distribuições de forças, os mesmos toques de cornetas, e por fim a própria hierarquia, já materialmente extinta num exército sem distintivos e sem fardas.
Sabia-se de uma coisa única: os jagunços não poderiam resistir por muitas horas. Alguns soldados se haviam abeirado do último reduto e colhido de um lance a situação dos adversários. Era incrível: numa cava quadrangular, de pouco mais de metro de fundo, ao lado da igreja nova, uns vinte lutadores, esfomeados e rotos, medonhos de ver-se, predispunham-se a um suicídio formidável*. Chamou-se aquilo o “hospital de sangue” dos jagunços. Era um túmulo. De feito*, lá estavam, em maior número, os mortos, alguns de muitos dias já, enfileirados ao longo das quatro bordas da escavação e formando o quadrado assombroso dentro do qual uma dúzia de moribundos, vidas concentradas na última contração dos dedos nos gatilhos das espingardas, combatiam contra um exército.
E lutavam com relativa vantagem ainda.
Pelo menos fizeram parar os adversários. Destes os que mais se aproximaram lá ficaram, aumentando a trincheira sinistra de corpos esmigalhados e sangrentos. Viam-se, salpintando o acervo de cadáveres andrajosos dos jagunços, listras vermelhas de fardas e entre elas as divisas do sargento ajudante do 39º que lá entrara, baqueando logo. Outros tiveram igual destino. Tinham a ilusão do último recontro* feliz e fácil: romperem pelos últimos casebres envolventes, caindo de chofre sobre os titãs combalidos*, fulminando-os, esmagando-os...
Mas eram terríveis lances, obscuros para todo o sempre. Raro tornavam os que os faziam. Aprumavam-se sobre o fosso e sopeava-lhes* o arrojo o horror de um quadro onde a realidade tangível* de uma trincheira de mortos, argamassada de sangue e esvurmando* pus, vencia todos os exageros da idealização mais ousada. E salteava-os a atonia* do assombro...
Canudos não se rendeu
Fechemos este livro.
Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a história, resistiu até aoesgotamento completo. Expugnado* palmo a palmo, na precisão integral do termo, caiu no dia 5, ao entardecer, quando caíram os seus últimos defensores, que todos morreram. Eram quatro apenas: um velho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente cinco mil soldados.
Forremo-nos* à tarefa de descrever os seus últimos momentos. Nem poderíamos fazê-lo. Esta página, imaginamo-la sempre profundamente emocionante e trágica; mas cerramo-la vacilante e sem brilhos.
Vimos como quem vinga* uma montanha altíssima. No alto, a par de uma perspectiva maior, a vertigem...
Ademais, não desafiaria a incredulidade do futuro a narrativa de pormenores em que se amostrassem mulheres precipitando-se nas fogueiras dos próprios lares, abraçadas aos filhos pequeninos?...
E de que modo comentaríamos, com a só fragilidade da palavra humana, o fato singular de não aparecerem mais, desde a manhã de 3, os prisioneiros válidos* colhidos na véspera, e entre eles aquele Antônio Beatinho que se nos entregara, confiante – e a quem devemos preciosos esclarecimentos sobre esta fase obscura da nossa história?
Caiu o arraial a 5. No dia 6 acabaram de o destruir desmanchando-lhe as casas, 5.200 cuidadosamente contadas.
**as datas referem-se ao mês de outubro de 1897
Euclides da Cunha, Os sertões.
*Glossário
“ao cabo”: no fim
“formidável”: impressionante
“De feito”: De fato
“recontro”: combate
“combalidos”: enfraquecidos
“sopeava-lhes”: continha-lhes
“tangível”: concreta
“esvurmando”: espremendo
“atonia”: apatia
“Expugnado”: conquistado
“Forremo-nos”: livremo-nos
“vinga”: galga, sobe
“válidos”: sadios
FGV-SP 2024 - QUESTÃO 25
Considerando-se, no contexto da obra, o trecho “Vimos como quemvinga uma montanha altíssima. No alto, a par de uma perspectiva maior, a vertigem...”, verifica-se que a “vertigem”, a que se refere o autor, está associada, sobretudo,
A) às vertiginosas perspectivas visuais do arraial, que descortinara ao escalar o altíssimo Morro da Favela, ponto culminante do relevo de Canudos.
B) ao fato de que suas teorias, crenças e expectativas entraram em crise, diante da realidade que testemunhava.
C) à momentânea perda dos sentidos que o acometera, quando, finalmente, se vira confrontado com as proporções que tomara o massacre da população sertaneja.
D) ao impulso de precipitar-se no abismo, que o possuíra, ao inteirarse do horror da situação.
E) ao sentimento trágico de que a completa eliminação dos sertanejos era, finalmente, um mal necessário.
QUESTÃO ANTERIOR:
GABARITO:
B) ao fato de que suas teorias, crenças e expectativas entraram em crise, diante da realidade que testemunhava.
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