Na sucessão dos parágrafos do texto, verifica-se que a percepção do narrador assume feição crescentemente
Texto para as questões de 21 a 23.
Estorvo
Para mim é muito cedo, fui deitar dia claro, não consigo definir aquele sujeito através do olho mágico. Estou zonzo, não entendo o sujeito ali parado de terno e gravata, seu rosto intumescido pela lente. Deve ser coisa importante, pois ouvi a campainha tocar várias vezes, uma a caminho da porta e pelo menos três dentro do sonho. Vou regulando a vista, e começo a achar que conheço aquele rosto de um tempo distante e confuso. Ou senão cheguei dormindo ao olho mágico, e conheço aquele rosto de quando ele ainda pertencia ao sonho. Tem a barba. Pode ser que eu já tenha visto aquele rosto sem barba, mas a barba é tão sólida e rigorosa que parece anterior ao rosto.
O terno e a gravata também me incomodam. Eu não conheço muita gente de terno e gravata, muito menos com os cabelos escorridos até os ombros. Pessoas de terno e gravata que eu conheço, conheço atrás de mesa, guichê, não são pessoas que vêm bater à minha porta. Procuro imaginar aquele homem escanhoado e em mangas de camisa, desconto a deformação do olho mágico, e é sempre alguém conhecido mas muito difícil de reconhecer. E o rosto do sujeito assim frontal e estático embaralha ainda mais o meu julgamento. Não é bem um rosto, é mais a identidade de um rosto, que difere do rosto verdadeiro quanto mais você conhece a pessoa. Aquela imobilidade é o seu melhor disfarce, para mim.
Recuo cautelosamente, andando no apartamento como dentro d'água. Escorregarei de volta para a cama, e creio que o sujeito acabará desistindo, convencido de que não há ninguém em casa. Mas nem bem ultrapasso a divisória imaginária do meu quarto-e-sala, e a campainha toca outra vez. Não posso dormir com a imagem daquele homem fixo na minha porta. Volto ao olho mágico. Hei de surpreender uma imprudência dele, uma impaciência que o denuncie, que me permita ligar o gesto à pessoa. Mas enquanto estou ali ele não toca a campainha, não olha o relógio, não acende um cigarro, não tira o olho do olho mágico.
Agora me parece claro que ele está me vendo o tempo todo. Através do olhomágico ao contrário, me vê como se eu fosse um homem côncavo. Assim ele me viu chegar, grudar o olho no buraco e tentar decifrá-lo, me viu fugir em câmera lenta, os movimentos largos, me viu voltar com a fisionomia contraída e ver que ele me vê e me conhece melhor do que eu a ele. Porque eu sei apenas que ele não é o que pretende aparentar, um vendedor, um administrador, um distraído. E ele me conhece o suficiente para saber que eu poderia até receber um estranho, mas nunca abriria a porta para alguém que de fato quisesse entrar.
Agora ele já percebeu que é inútil, que não me engana mais, que eu não abro mesmo, que sou capaz de morrer ali em silêncio, posso virar um esqueleto em pé diante do esqueleto dele, então abana a cabeça e sai do meu campo de visão. E é nesse último vislumbre que o identifico com toda a evidência, voltando a esquecê-lo imediatamente. Só sei que era alguém que há muito tempo esteve comigo, mas que eu não deveria ter visto, que eu não precisava rever, porque foi alguém que um dia abanou a cabeça e saiu do meu campo de visão, há muito tempo.
Chico Buarque de Holanda, Estorvo.
FGV-SP 2024 - QUESTÃO 22
Na sucessão dos parágrafos do texto, verifica-se que a percepção do narrador assume feição crescentemente
A) megalomaníaca.
B) melancólica.
C) deprimida.
D) persecutória.
E) eufórica.
QUESTÃO ANTERIOR:
GABARITO:
D) persecutória.
RESOLUÇÃO:
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PRÓXIMA QUESTÃO:
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